Os Compadres e as Comadres
"Em Cinfães, num exemplo particularmente rico, ao aproximar-se a época carnavalesca, os dois campos estremam-se tácita e radicalmente; as raparigas da terra, com absoluta exclusão do elemento masculino, e os rapazes com idêntica exclusão do elemento feminino, confecionam secretamente grandes bonecos e bonecas de palha, vestidos de papel de seda, e com os braços abertos; os das raparigas são os «Compadres», e os dos rapazes, as «Comadres». A vez, de entrada, cabe às raparigas: nos dias que precedem a penúltima quinta-feira antes do Domingo Gordo, as detentoras de «Compadres» exibem-nos furtivamente, e durante breves minutos apenas, a uma janela das suas casas; há sempre rapazes de vigia, e o facto é imediatamente assinalado e divulgado entre os demais: «F.a tem um ‘compadre’!»
A partir desse momento, o objetivo dos rapazes é apoderarem-se desses «Compadres» que estão nas mãos das raparigas; e, certamente, pela força mágica das representações, são os próprios rapazes que se encontram cativos, em poder e à mercê das raparigas, e que são objeto das suas sevícias e atentados simbólicos.
Pelo contrário, o objetivo das raparigas, relativamente aos «Compadres», é impedir que os rapazes lhos roubem. Por isso, uma vez revelada a existência dos «Compadres» em certas casas, são estes imediatamente escondidos o melhor e o mais astuciosamente possível.
Por parte dos rapazes, inicia-se então a busca dos «Compadres» escondidos. Essa busca é completamente livre e total: eles podem entrar em todas as casas, abrir todas as portas, revolver todas as arcas e móveis; ninguém se opõe ou protesta contra essas atividades. Deitam escadas às janelas, vão pelos telhados, utilizam, enfim, todos os meios e ardis para tentarem surpreender o segredo do paradeiro do «Compadre» que as raparigas lhes escondem, e deitarem-lhe a mão. As mães são contra os filhos, os pais são contra as filhas, os irmãos contra as irmãs, os maridos contra as mulheres. A solidariedade entre os elementos de cada sexo e a luta contra os elementos do sexo oposto são perfeitas; há verdadeiras conjuras entre homens e mulheres, tentativas de suborno, etc., sempre com o fim de descobrir onde se escondem «Compadres» e «Comadres». As raparigas procuram o apoio cúmplice das mulheres mais respeitáveis e insuspeitas, para iludirem a perspicácia dos rapazes e escamotearem um boneco prestes a ser descoberto, que levam disfarçadamente para outra casa, e escondem novamente; às vezes, nesse novo paradeiro, e para acinte dos rapazes, exibem-no novamente a uma janela, mostrando assim que o «Compadre» «ainda está vivo», isto é, ainda não foi apanhado.
E desta maneira, uns «Compadres» descobertos e em poder dos rapazes, e outros que as raparigas conseguiram conservar, chega-se à mencionada penúltima quinta-feira antes de Domingo Gordo, que leva, para o efeito, o nome de «Quinta-Feira de Compadres», e em que estes «se correm»; as raparigas mais ligeiras, agarrando os bonecos, que os rapazes não puderam encontrar, no largo da vila, fogem dos rapazes que as perseguem com barulheiras e algazarras, para lhos arrancarem, defendendo-se deles, e passando-os de umas para outras, quando assim é preciso para melhor tentarem conservá-los.
E afinal, de uma forma ou de outra, parte dos «Compadres» cai em poder dos rapazes, e a outra parte, provavelmente muito diminuta, continua na posse das raparigas.
Seguidamente, e com desfecho paralelo na quinta-feira seguinte (a última antes do Domingo Gordo), que leva o nome de «Quinta-Feira de Comadres», e em que estas são «corridas», tem lugar idêntica exibição e escondimento das «Comadres» por parte dos rapazes e a perseguição por parte das raparigas, presumivelmente com sucesso inferior ao que se verifica quando os perseguidores são os rapazes..."
(Ernesto Veiga de Oliveira | https://books.openedition.org/etnograficapress/5928)
A partir desse momento, o objetivo dos rapazes é apoderarem-se desses «Compadres» que estão nas mãos das raparigas; e, certamente, pela força mágica das representações, são os próprios rapazes que se encontram cativos, em poder e à mercê das raparigas, e que são objeto das suas sevícias e atentados simbólicos.
Pelo contrário, o objetivo das raparigas, relativamente aos «Compadres», é impedir que os rapazes lhos roubem. Por isso, uma vez revelada a existência dos «Compadres» em certas casas, são estes imediatamente escondidos o melhor e o mais astuciosamente possível.
Por parte dos rapazes, inicia-se então a busca dos «Compadres» escondidos. Essa busca é completamente livre e total: eles podem entrar em todas as casas, abrir todas as portas, revolver todas as arcas e móveis; ninguém se opõe ou protesta contra essas atividades. Deitam escadas às janelas, vão pelos telhados, utilizam, enfim, todos os meios e ardis para tentarem surpreender o segredo do paradeiro do «Compadre» que as raparigas lhes escondem, e deitarem-lhe a mão. As mães são contra os filhos, os pais são contra as filhas, os irmãos contra as irmãs, os maridos contra as mulheres. A solidariedade entre os elementos de cada sexo e a luta contra os elementos do sexo oposto são perfeitas; há verdadeiras conjuras entre homens e mulheres, tentativas de suborno, etc., sempre com o fim de descobrir onde se escondem «Compadres» e «Comadres». As raparigas procuram o apoio cúmplice das mulheres mais respeitáveis e insuspeitas, para iludirem a perspicácia dos rapazes e escamotearem um boneco prestes a ser descoberto, que levam disfarçadamente para outra casa, e escondem novamente; às vezes, nesse novo paradeiro, e para acinte dos rapazes, exibem-no novamente a uma janela, mostrando assim que o «Compadre» «ainda está vivo», isto é, ainda não foi apanhado.
E desta maneira, uns «Compadres» descobertos e em poder dos rapazes, e outros que as raparigas conseguiram conservar, chega-se à mencionada penúltima quinta-feira antes de Domingo Gordo, que leva, para o efeito, o nome de «Quinta-Feira de Compadres», e em que estes «se correm»; as raparigas mais ligeiras, agarrando os bonecos, que os rapazes não puderam encontrar, no largo da vila, fogem dos rapazes que as perseguem com barulheiras e algazarras, para lhos arrancarem, defendendo-se deles, e passando-os de umas para outras, quando assim é preciso para melhor tentarem conservá-los.
E afinal, de uma forma ou de outra, parte dos «Compadres» cai em poder dos rapazes, e a outra parte, provavelmente muito diminuta, continua na posse das raparigas.
Seguidamente, e com desfecho paralelo na quinta-feira seguinte (a última antes do Domingo Gordo), que leva o nome de «Quinta-Feira de Comadres», e em que estas são «corridas», tem lugar idêntica exibição e escondimento das «Comadres» por parte dos rapazes e a perseguição por parte das raparigas, presumivelmente com sucesso inferior ao que se verifica quando os perseguidores são os rapazes..."
(Ernesto Veiga de Oliveira | https://books.openedition.org/etnograficapress/5928)
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